Emir Sader in JBOnline, 16/03/2003
Há certa sensibilidade em alguns setores, incomodados com o isolamento e o papel que o governo – e a opinião pública – norte-americana está tendo na atualidade, que buscam identificar ou dissolver o antiimperialismo das manifestações contra o governo Bush numa espécie de ”antiamericanismo”. É um raciocínio similar dos que, diante da crítica do papel de ocupação colonial que o governo de Israel desenvolve em relação aos palestino, trata de desqualificar as críticas sob o rótulo de um suposto ”anti-semitismo”, quando se trata de críticas a esse papel do Estado israelense.
Trata-se do tipo de tese que Edward Said chama de ”narratemas” – formulações que divulgadas amplamente pela mídia, ”que estruturam revestem e controlam toda discussão” num molde estreito, reduzindo toda a diversidade e complexidade das questões a fórmulas banais. Grande parte delas advém da supressão da História . ”Nos EUA a História foi expulsa do discurso público, a própria palavra é sinônimo de nada ou de insignificância, principalmente na frase depreciativa, típico do desdenho, ‘you’re history’ (‘você é um cara ultrapassado’).”
Os antecedentes que tornam incômodas as posições dos EUA, como evocar o passado de suas relações com Saddam Hussein e com Bin Laden, por exemplo, se tornam não pertinentes. Dessa forma, continua praticamente ausente do ensino de história nos EUA, na forma preponderante que deveria ter, por haver sido os pilares na construção da sociedade norte-americana, tal qual ela é hoje, a servidão do povo afro-americano e a expropriação e o quase extermínio da população ameríndia. Enquanto existe um importante Museu do Holocausto em Washington, em nenhum lugar dos EUA existe algo similar nem para os afro-americanos, nem para os ameríndios.
É nesse marco que entra a tese de que toda rejeição a posições do governo dos EUA é ”antiamericanismo” e funda-se na inveja do que são esse país. Trata-se, como recorda Said, de um discurso que faz abstração das manipulações de poder, de lucros, de pilhagens de recursos, mudanças de regime pela força. Que faz abstração do Irã (1953), da Guatemala (1954), do Chile (1973) para não ir mais longe.
Antiamericanismo seria se tudo o que fosse norte-americano fosse rejeitado. No Fórum Social Mundial de Porto Alegre deste ano, alguns dos mais ovacionados participantes foram norte-americanos, como Noam Chomsky e Medea Benjamin, fortes opositores do governo norte-americano, que não podem ser acusados de antinorte-americanos. Nos EUA se desenvolve um grande movimento de massas contra a guerra, envolvendo estudantes, intelectuais, artistas de cinema e de TV, sindicalistas, ecologistas, feministas, jornalistas, entre tantos outros. Os EUA possuem movimentos sociais, culturais, artísticos, literários, de enorme transcendência, possuem uma parte significativa do que de melhor se faz de música no mundo. Os que se opõem ao governo de Bush não têm nada contra esses movimentos.
A oposição é à política imperial dos EUA, que escandalosamente adianta uma agressão a Iraque, sem que exista nenhum decisão da ONU, menos ainda que, se essa decisão existir, seria delegada ao governo Bush colocá-la em prática, decidir sobre o futuro do governo iraquiano e do petróleo desse país. O próprio fato que uma parte significativa do povo norte-americano, apesar da brutal campanha de imprensa e da chantagem do governo Bush, se pronuncia contra a guerra ou contra a guerra se não houver aprovação da ONU, demonstra a diferença entre a posição desse governo e os EUA como país.
Lutar por outro mundo possível, hoje, não é apenas lutar por um mundo pós-neoliberal, mas necessariamente derrotar a política de militarização dos conflitos mundiais posta em prática pelo governo norte-americano. É lutar pela resolução pacífica e justa dos conflitos mundiais. No caso atual, como é posição oficial do governo brasileiro, desarmar o Iraque por meio pacíficos. Opor-se, portanto, à política imperial do governo norte-americano.
E depois eu sou chamada de neurótica, por não gostar dos Estados Unidos, mas vai dizer que não é bem assim? O fato é que minha ‘incompatibilidade’ não é com o país propriamente dito, mas com aquilo que ele representa e suas ideologias. Não consigo enxergar nas atitudes americanas, no que se refere à política internacional e ao que eles chamam de diplomacia, um mínimo de boa vontade. É sempre por causa de dinheiro – às vezes petróleo, às vezes ouro, às vezes escravos, às vezes mercado de consumo, enfim, dinheiro – e o pior é que não existe o mínimo desejo de disfarçar decentemente. Ou você engole a versão estúpida, ou você é contra a democracia e a liberdade. Ora, aos diabos, aquele país sequer sabe o que essas palavras significam!
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