Tudo que os professores não diziam e eu não perguntava na escola pra não ser a pária social CDF, eu perguntava pro meu pai. Quando a pergunta era difícil e de resposta longa, ele dava uma boa suspirada, mas tinha uma paciência de Jó pra responder. Assim foi no dia da pergunta “Pai, como era viver na ditadura?” Um enorme suspiro e uma explicação maior ainda.
Quando a ditadura começou, meu pai tinha 15 anos, ele viu endurecer, teve sua fichinha no DOPS por ser universitário, mas nunca passou perrengue algum de fato. Enquanto o Brasil vivia seus anos de chumbo, meus pais construíam a família, a casa, a vida, cuidando de seus próprios problemas e não das grandes questões nacionais.
Haviam os festivais, os programas de TV, a consolidação da comunicação de massa com a tv e com o rádio. Mas vocês já conversaram com seus antecessores? Se fizerem isso, é bem provável que escutem versões muito brandas daquela época, coisas que levam pessoas famosas hoje em dia a duvidar da história porque seus pais não vivenciaram os problemas, nem conhecem ninguém que passou por isso.
Meu pai dizia que para quem não se importava, não morava nos grandes centros urbanos nem se envolveu nas universidades e nos meios intelectuais, a ditadura passou em brancas nuvens. Sim, caro leitor, em brancas nuvens. Porque para quem não tem conhecimento do quanto está sendo oprimido, para quem não reage, não há perseguição. Gado é gado, tanto faz hoje ou há 50 anos.
Não foi o seu avô vendedor de hortaliças que foi preso e torturado, nem meu pai representante comercial. Ninguém viu a ditadura passar na sua família se ninguém tinha nível educacional pra entender conceitos como poder de compra, dívida externa, macroeconomia, liberdade de expressão. E sejamos sinceros, há 50 anos não era em qualquer família que alguém conseguia chegar na universidade, menos ainda eram famílias em que um jovem poderia falar contra os absurdos do governo na mesa de domingo sem ser repreendido por um tio ou avô ignorante que não queria esse tipo de conversa baderneira. Provavelmente, a avó do interior que viu uma receita no lugar de uma notícia, recortou a receita pra fazer no final de semana sem sequer perceber o crime nas entrelinhas.
A maioria das pessoas se preocupa muito mais com seus problemas imediatos e complementa sua visão de mundo com seus achismos. Se você consegue perceber que isso é errado, saiba que você é um privilegiado. Para se preocupar com questões maiores de desenvolvimento da sociedade, você precisa ser uma pessoa que tem comida, roupa, teto e principalmente educação. Mesmo meus pais, que não eram ignorantes, tinham mais coisas pessoais a resolver do que se engajar em movimentos nacionais perigosos. Se mantiveram alienados porque precisavam cuidar das próprias vidas.
Se hoje você sabe, você deve isso a pessoas que se levantavam pelo bem de todos, enquanto aqueles que relevam a ditadura só estavam tentando resolver seus próprios problemas. Mesmo que a pessoa não ache que foi uma vítima, ela foi. Síndrome de Estocolmo, sabe?
Por isso, se você tem que lidar com alguém que acha que a ditadura não existiu (ou foi susse, ou só prendeu vagabundos), respire bem fundo como meu pai e explique. Explique como meu pai fazia, não seja como aquele velho que não queria conversa baderneira. Tente mostrar que o mundo inteiro não é medido pelo próprio umbigo egoísta. O objetivo todo é fazer a próxima geração menos alienada do que a atual, assim como no geral somos bem menos alienados que a geração anterior.
Se não fizermos isso, estamos fadados a uma existência em que o cara aponta uma régua pra linha do horizonte e assim prova que a Terra é Plana. Esse é um ignorante também, caso alguém tenha dúvida. Ambos os casos são alienações resultantes do indivíduo que não percebe sua mediocridade na existência coletiva, seja do país ou do universo. É só pretensão, a gente pode ajudar.
obs.: por favor, não se ofenda com a palavra “ignorante”, pois isso só significa que a pessoa não sabe, não é uma ofensa, qualquer ignorante pode aprender, desde que ele queira e encontre alguém que queira ensinar. Que tal você?
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